Opinião Segunda-Feira, 09 de Setembro de 2024, 10h:04 | Atualizado:

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Bianca Boscoli

Quem cuida de quem vai à guerra por nós?: A interface entre psicologia e direito

 

Bianca Boscoli

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Bianca Boscoli

 

Direito e psicologia se interseccionam. Sim, quem nunca ouviu de uma advogada a frase “hoje eu atuei como psicóloga”? Isso ocorre, porque ambas as ciências têm a necessidade de trabalhar com conflitos. Porém, a psicologia trabalha com a subjetividade, com o sistema de pensamento e com o inconsciente. Já o direito trabalha com a objetividade, com o limite do desejo pessoal que é estabelecido na lei. 

Assim, psicologia e direito convergem e se divergem, mas devemos sempre lembrar que o sujeito do direito é também o sujeito do desejo. Um processo judiciário nada mais é que a materialização de uma realidade subjetiva. Ou seja, todo litígio é movido por um desejo consciente ou inconsciente, onde o sujeito coloca a responsabilidade da resolução de demandas subjetivas no magistrado ou no próprio advogado. 

Esse movimento psíquico é chamado de transferência na psicologia, e há advogados que consciente ou inconscientemente já reconhecem esse movimento e não se “perdem” mais nisso. Mas há outros que possuem uma certa dificuldade e fazem o que chamamos de contra- transferência. 

O advogado se envolve tanto no caso que acaba gerando problemas para ele mesmo, ou conflitos com sua própria equipe e funcionários. Em muitos casos, o processo acaba e o advogado pensa que aquele “nó” que ele fez com o caso também. Entretanto, o conflito se desloca, o próprio cliente volta com outra demanda, já que seu verdadeiro conflito também não foi solucionado, ou o advogado cria outros nós, com outros processos ou até com os funcionários e familiares.

Acaba tudo se misturando. Um exemplo patrício, é a de um juiz que apesar de ser imparcial não é neutro, pois é impossível se separar da sua subjetividade. Então, ao chegar em casa, ele também não consegue se separar das demandas do trabalho e na maioria das vezes, ele só ignora, porque nós vivemos regido pelo princípio do prazer, preferimos ficar na nossa zona de conforto e quando sentimos um trauma preferimos ignora-los. 

Outra ilustração, são os advogados de família, que acabam lidando com o “resto de amor” em brigas de famílias. Mas como, então, o advogado deve lidar com o resto dos outros? E principalmente com o dele? Antes de responder essa pergunta fatídica, é importante salientar que conflitos nos fazem crescer e a saída não é evitá-lo. Inclusive, apesar de raro, em algumas situações o litígio é sim benéfico, pois ajuda os sujeitos a elaborarem seus traumas. 

Nesse sentido, um bom advogado é aquele que possibilita um lugar de fala ao cliente, um acolhimento e às vezes até a própria responsabilização. É aquele que percebe o discurso latente do cliente. Ou seja, ele percebe a demanda daquela procura, não o motivo manifesto que está no seu discurso, mas o que está por trás. Com sua vasta experiência, muitos advogados fazem esse processo rapidamente. Como no caso de um pai, que inconscientemente, está fazendo mal para os seus filhos, praticando a alienação parental. 

Eles identificam padrões psicológicos, mesmo não conhecendo a ciência psicológica, porque sabem sobre gente. Mas infelizmente, muitas vezes, não sabem sobre si próprios. Mas como perceber, então, o que está latente em seus próprios padrões? A causa daqueles sintomas psicossomáticos?

É interessante que advogados não recebem salários, mas sim honorários e essa palavra deriva de honra. Entretanto, será que eles mesmo honram suas singularidades e demandas? Como já mencionado, os melhores profissionais do direito horam sim seus clientes, compreendendo seus processos subjetivos, mas será que eles conseguem impor limites aos seus próprios clientes? Limites de horários para a própria escuta, limites de transferências... Afinal eles não são heróis, mágicos ou mesmo psicólogos. 

Nesse sentido, o psicanalista Lacan fala que são três paixões que regem o homem: o amor, o ódio e a ignorância. O amor rege a humanidade, inclusive por isso ela ainda existe, o ódio nos gera prazeres inconscientes como, por exemplo, o próprio litígio. Sim, temos um fundo de prazer em praticar mal e esse conceito foi tão revolucionário que Einstein perguntou para Freud: Por que a guerra? (e se você trabalha com o direito ou diretamente com pessoas, recomendo que procure por essa carta para lê-la). 

Já a ignorância está aí, no caso desses profissionais que entendem tanto os seus clientes, mas não entendem sobre si. Qual a saída? A saída é entender que esses “nós / restos” podem surgir porque a lógica jurídica atravessa a subjetividade desses profissionais. A lógica da objetividade, da limitação e em alguns casos é necessário pedir ajuda. Assim, como seus clientes pedem auxilio, eles também podem e devem fazer isso. 

Creio, que muitos deles desejam com toda a sua força que seus clientes compreendem suas ações, desejos, comportamentos. E eu, enquanto psicóloga, também desejo profundamente que eles se cuidem para cuidar das demandas dos outros.

Bianca Boscoli é psicóloga





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