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Segunda-Feira, 16 de Setembro de 2024, 05h00

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Saiba como as "mortes solitárias" se tornaram um desafio na Ásia

O GLOBO

 

Ao entrarem em um prédio abandonado prestes a ser demolido, em 2004, em Tóquio, talvez nada pudesse ter preparado os funcionários da prefeitura para a cena diante de seus olhos: os restos mortais há muito decompostos de um homem, deitado sobre um tatame no chão. Na mesa, um jornal de fevereiro de 1984. Segundo a polícia, ele morava no local desde o início dos anos 1980, depois de se divorciar e se ver sem dinheiro para pagar o aluguel. Seu desaparecimento jamais foi relatado às autoridades.

O episódio é o exemplo de uma grave crise humanitária — no mês passado, a Agência Nacional de Polícia revelou que 37.227 pessoas morreram sozinhas em casa de janeiro a junho de 2024, em sua maioria com mais de 65 anos. Um fenômeno que tem nome, “kodokushi”, e que expõe também os desafios para lidar com uma população cada vez mais velha. Uma crise semelhante é enfrentada pela Coreia do Sul, onde o kodokushi tem outro nome, “godoksa”, mas com características próprias.

Em entrevista ao GLOBO, Beatriz Kaori Miyakoshi, mestra em Estudos Japoneses, apontou que a causa central para o kodokushi é o bolso: um quinto dos idosos vive em situação de pobreza no Japão, especialmente as mulheres, obrigadas a escolher entre o trabalho e cuidar da casa.

Prisão como opção

Uma estimativa publicada pelo Borgen Project, uma organização que defende a aplicação de políticas de combate à pobreza, revelou que, em 2019, 44,1% das mulheres com mais de 65 anos no país recebem pensões menores do que o valor mínimo considerado para suprir as necessidades básicas, US$ 10 mil por ano. Entre os homens a taxa é menor, 30%. Há casos de idosos que cometem pequenos crimes justamente para serem presos e, atrás das grades, terem a garantia de cuidados médicos, alimentação e um teto.

— Apesar de existir no Japão a cultura de cuidar dos idosos por parte dos filhos, não é uma regra. E outro problema é a falta de filhos e casamentos — pontuou Kaori. — Uma situação comum é de casais idosos sem filhos envelhecerem, a mulher viver mais que o homem e não conseguir sobreviver sem a pensão [do marido].

Segundo números da Organização Mundial da Saúde, a mulher japonesa tem uma expectativa de vida de 87,2 anos (2021), enquanto a do homem é de 81,7 anos. Ao mesmo tempo, cada vez menos pessoas nascem: em 2023, a taxa de fertilidade foi de 1,20, segundo o Ministério da Saúde. Também no ano passado, o número de casamentos ficou abaixo de 500 mil pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Com filhos vivendo em outras cidades ou países, ou sem filhos, a solidão é um destino que parece implacável: segundo o Instituto Nacional de Pesquisa Populacional e Previdência Social, o número de pessoas com mais de 65 anos que vivem sozinhas passará de 7,38 milhões, em 2020, para 8,87 milhões em 2030, e 10,84 milhões em 2050. Em 2023, o Japão tinha 36,23 milhões de habitantes com mais de 65 anos — em 2100, serão mais de 40% da população.

Sem suporte externo, muitos sucumbem a doenças ou à fome, e são encontrados mortos dias, meses ou anos depois, muitas vezes por senhorios que batem na porta para receber o aluguel atrasado.

— O que faz o envelhecimento populacional ser um fenômeno tão difícil de lidar é que ele é uma “revolução silenciosa”, como definiu Kofi Annan (ex-secretário-geral da ONU) — afirmou Kaori. — Diferentemente de grandes surtos demográficos, ocorre de maneira tão lenta e gradual que se torna difícil prever seu impacto e se preparar.

Baixa taxa de fertilidade

Na Coreia do Sul, um estudo divulgado em janeiro pela Universidade de Busan revelou que os homens correspondem a quase 85% das mortes solitárias: ao contrário do Japão, a maior parte dos casos ocorreu com homens entre 50 e 60 anos (40%), seguidos por pessoas com mais de 60 e, em uma mostra do caráter econômico do godoksa, por vítimas com menos de 40 anos. Em 2023, o Ministério da Saúde e Bem-Estar identificou 1,5 milhão de pessoas com risco elevado de morte solitária.

Em maio do ano passado, o corpo de uma mulher foi encontrado em um distrito do sul de Seul, cerca de três meses depois de morrer sozinha. Em 2018, um homem com cerca de 50 anos foi achado seis meses depois de morrer, de causas desconhecidas, em uma casa de Busan, segunda maior cidade do país. Em 2022, foram registrados 3.378 casos.

Assim como o Japão, a Coreia do Sul enfrenta uma grave crise demográfica — a taxa de fertilidade é de 0,72 filho por mulher, a mais baixa do mundo —, e tem uma população idosa cada vez maior e mais pobre: 38,6% das pessoas com mais de 65 anos não têm meios para sobreviver.

 

Além disso, uma sociedade onde há baixa tolerância para o fracasso e um mercado que exclui trabalhadores de meia-idade criam o roteiro para um desastre. Uma conhecida prática corporativa consiste em pressionar os trabalhadores com mais de 50 anos a se aposentarem mais cedo (com pensões menores) para evitar o pagamento de encargos. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, só 25% das pessoas entre 55 e 59 anos tinham, em 2020, o mesmo empregador de cinco anos antes. A média é de 52%.

— Homens na faixa dos 50 e 60 anos correm o risco de uma morte solitária se perderem o emprego e se afastarem da família, ficando rapidamente isolados da sociedade à medida que sua saúde se deteriora — disse Song In-joo, pesquisadora do Centro de Bem-Estar de Seul, ao site Chosun Daily.

Ministério da solidão

Como apontou Kaori ao GLOBO, parte importante da solução passa pela comunicação: métodos para mapear a situação dos idosos, aliando a tecnologia ao trabalho das comunidades, podem alertar para situações de risco. A criação do Ministério da Solidão pelo governo japonês, em 2021, focado em ações no campo da saúde mental, e a sul-coreana Lei de Prevenção e Gestão da Morte Solitária mostram a disposição das autoridades para enfrentar a crise.

Mas essas não deixam de ser medidas paliativas. Com populações cada vez mais envelhecidas, os governos precisarão de ideias para melhorar a qualidade de vida de seus idosos, incluindo a renda e as redes de bem-estar social. No caso sul-coreano, mudanças no mercado de trabalho e a inclusão de pessoas com mais de 50 anos serviriam como uma boia de salvação para muitos.

— A probabilidade de morte solitária certamente aumentará na sociedade de agora em diante — disse o ministro da saúde, Keizo Takemi, em junho. — É importante que enfrentemos a questão de frente.

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