Opinião

Sábado, 10 de Agosto de 2024, 10h28

Renato Paiva

Moral Elástica

Renato Paiva

 

Há alguns meses na periferia aqui da capital vi um caminhão de entrega de cerveja derrubando a carga na rua. Até que o motorista conseguisse parar o veículo, dezenas de pessoas de carro, caminhão, bicicleta, moto e a pé lançaram-se desesperadamente sobre as latas espalhadas, pegando o máximo que conseguiam carregar.  Não sobrou nada para ser recolhido pelo transportador.  

Lembrei-me disso vendo as constrangedoras cenas dos saques no Rio de Janeiro após confronto de quadrilhas de traficantes que disputavam pontos de vendas de drogas nas favelas cariocas. 

A mídia documentou outro caminhão, este carregado de carne bovina, que tombou na pista. Cerca de mil pessoas, segundo testemunhas, apareceram de repente e saquearam toda a carga, coisa aí de 30 mil quilos. A polícia só pode afastar os ladrões da rodovia para evitar atropelamentos, mas não conseguiu evitar o roubo. Ninguém se preocupava em ser reconhecido ou fotografado. Vizinhos e amigos disputavam cada naco de carne, já imaginando o churrasco da tarde.

Intensificou-se aqui no estado o roubo de defensivos agrícolas. Quadrilhas especializadas estão achando mais fácil roubar defensivos, porque o ganho é maior e o risco menor. Além disso, tem grande facilidade de repassar o produto ilegal, tanto para os revendedores como para alguns agricultores que não estão nem aí para a origem criminosa da mercadoria. 

O que existe de comum entre os episódios acima é que o que pegou a cerveja derrubada, o que saqueou o caminhão de carne ou o que intermediou ou comprou o defensivo roubado não se julga ladrão. Na verdade, como a maioria de nós, teoricamente, abomina o furto e o roubo.

A moral aqui no terceiro mundo é muito elástica e julgamo-nos com benevolência e com rigor, os outros. O mesmo que carregou a carne pode ir indignado à delegacia denunciar um furto do seu botijão de gás. O fazendeiro que comprou o defensivo esbraveja contra o empregado que levou um alicate ou uma lâmpada da fazenda. E ambos defendem os grupos de extermínio que liquidam bandidos. 

Esquecemos, porque nos convêm, que estamos incrementando o roubo comprando produtos ilegais. Sabemos que os desmanches de carros estimulam o roubo, mas compramos deles peças que nos interessam.  Centenas de pessoas estão dispostas a comprar por 500 reais um celular que custa quatro mil e existem agricultores interessados em pagar dois milhões por uma carga que custa cinco ou seis milhões no mercado.

Não adianta ficar dizendo que a polícia é isto, que o governo é aquilo.  Não resolve também afirmar que o judiciário solta os ladrões indevidamente. O problema é muito mais sério. Seria muito mais fácil combater o crime se os infratores fossem somente aqueles que agem na linha de frente. Mas é a retaguarda que garante a atividade ilícita. São os consumidores de entorpecentes e os compradores de produtos ilegais que fomentam a maioria da cadeia criminosa. 

E a geração que vê pais, vizinhos e parentes roubando produtos de veículos acidentados, tem grande chance de reproduzir e potencializar esse comportamento nefasto.

Renato Paiva

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