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Segunda-Feira, 03 de Fevereiro de 2025, 16h00

MAL DO TIGRINHO

Perda de dinheiro em apostas faz aumentar sequestros forjados

Muitos deles motivados pela perda de dinheiro em apostas

EXTRA

 

A mensagem chegou pelo Facebook a parentes de Dayverd da Silva, de 22 anos, no início da tarde de 15 de janeiro de 2024. Enviado por um perfil anônimo, o recado informava que o vendedor havia sido sequestrado e só seria libertado após o pagamento de R$ 100 mil. Uma chave Pix e uma foto de Silva amarrado acompanhavam o texto. Aflita, a família resolveu procurar a Delegacia Antissequestro (DAS), que logo entrou no caso e começou a buscar o cativeiro. No dia seguinte, em novo contato, os criminosos aceitaram baixar o valor do resgate para R$ 2 mil — os parentes, então, se juntaram e transferiram o valor para os sequestradores. Por volta das 17h, Silva reapareceu cheio de feridas pelo corpo.

O vendedor, então, foi levado à DAS para prestar depoimento — e a farsa veio à tona. Silva admitiu que forjou o próprio sequestro para tentar recuperar o dinheiro que havia perdido num site de apostas eletrônicas, uma bet. Em seu relato, ele revelou que desviou R$ 40 mil da loja de automóveis do sogro, onde trabalhava, para jogar em cassinos on-line.

Após perder todo o montante em apenas um dia, decidiu colocar o plano em prática: “Foi uma tentativa desesperada de devolver o dinheiro”, contou. Silva também revelou que chegou a contratar, por R$ 100, um vizinho usuário de drogas para que o agredisse com uma vara de madeira e tornasse a história mais verossímil. Depois do depoimento, o vendedor foi preso.

Farsas como a inventada por Silva viraram rotina para investigadores da DAS: somente no ano passado, a especializada solucionou 11 casos em que os autores forjaram seus próprios sequestros com o objetivo de conseguir tirar dinheiro de amigos e parentes. O número de casos do tipo, segundo agentes da DAS, representa um recorde absoluto na história da delegacia.

A quantidade supera o número total de sequestros verdadeiros registrados em todo o estado do Rio nos últimos cinco anos: segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), desde 2020, foram dez casos — cinco deles em 2024.

Investigadores estimam que, no ano passado, a apuração de sequestros simulados tenha representado mais de um terço do volume total de trabalho da DAS — que também atua nos casos de extorsões mediante sequestro, os chamados sequestros-relâmpago. Apesar de as histórias serem inventadas, o protocolo de investigação é exatamente o mesmo de ocorrências verdadeiras, com a quebra de sigilos dos envolvidos e operações para busca de cativeiros.

Fotos falsas

 

Durante a investigação do caso do vendedor, por exemplo, policiais chegaram a ser atacados a tiros por traficantes no Complexo do Alemão, onde procuravam o local usado pelos supostos sequestradores com base no endereço cadastrado na conta Pix passada à família para pagamento do resgate.

Dayverd da Silva foi solto na audiência de custódia, acabou denunciado pelo Ministério Público por estelionato, admitiu o crime e assinou acordo de não persecução penal, homologado pela Justiça.

O vício em apostas on-line está por trás de outros casos solucionados pela DAS. Em novembro, Stephany Cristini de Medeiros Coelho, de 22 anos, foi presa em flagrante após enviar mensagens para seu pai simulando um sequestro. O objetivo era conseguir dinheiro para pagar dívidas contraídas por conta de apostas feitas.

Para convencê-lo, ela chegou a enviar uma foto nua, agachada e próxima a um prato de comida. A polícia descobriu que a mulher havia perdido, em cassinos digitais, R$ 50 mil provenientes da “caixinha” de amigos que administrava — mensalmente os integrantes faziam pagamentos e, no fim do ano, recebiam o dinheiro de volta.

Na delegacia, ela admitiu a farsa e afirmou que, enquanto simulava o sequestro, passou o dia perambulando pela cidade. Após ser presa, foi libertada na audiência de custódia. O MP pediu a quebra de sigilo do celular da mulher para oferecer denúncia.

Para Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a explosão no número de registros na DAS de casos de falsos sequestros reflete a mudança no perfil do crime patrimonial no Brasil: nos últimos cinco anos, crimes patrimoniais virtuais triplicaram no país, enquanto os crimes de rua caíram.

— Esses sequestros forjados são, sobretudo, crimes virtuais, cometidos no ambiente digital, que aumentaram vertiginosamente no Brasil nos últimos anos. O mundo mal regulado da internet faz com que os autores desses crimes não se sintam criminosos, acham que o que fazem na internet não é crime. Isso, combinado com o fenômeno novo das bets e com o endividamento da população decorrente dessas apostas, pode explicar o aumento dos casos do tipo — explica Lima.

Punição real

Embora os sequestros sejam falsos, os envolvidos estão sujeitos a penas reais: há casos elucidados pela DAS em que os autores podem ser condenados a até 20 anos de prisão. Desde fevereiro do ano passado, Paula de Freitas Ramos, Daniel dos Santos Moraes e Leonardo Medina Ramos são réus pelos crimes de extorsão e corrupção de menor, com penas que somadas podem chegar a 19 anos. O grupo é acusado de ajudar uma adolescente de 17 anos a simular o próprio sequestro.

Na ocasião, a autora passou dez dias nas casas de amigos, em São Gonçalo, e enviou uma série de mensagens para a mãe em que se passava pelo sequestrador e pedia um resgate de R$ 40 mil. Segundo a polícia, além de tirar dinheiro da própria família, a adolescente queria incriminar um ex-namorado com quem havia brigado à época. Os três amigos, maiores de idade, são acusados de abrigar a jovem e a auxiliar na farsa — produzindo fotos do “cativeiro”, por exemplo. À Justiça, o trio nega ter participado do plano.

Gabriela dos Santos Silva, de 28 anos, e Aldo Homem, de 62 anos, também podem pegar pena de até 15 anos. Os dois foram presos em outubro passado sob a acusação de simular o sequestro da mulher. Em mensagens enviadas aos parentes, o casal se passava por um criminoso, afirmava ter capturado Gabriela porque ela estaria devendo a agiotas e cobrava R$ 2,9 mil de resgate.

A polícia descobriu a farsa quando encontrou filmagens do casal fazendo compras num supermercado tranquilamente enquanto o suposto sequestro acontecia. Os dois seguem presos e, no processo, suas defesas negam as acusações.

Questionado sobre os motivos para o crescimento de casos de sequestros forjados registrados na DAS, o delegado William Pena, titular da especializada, afirmou, por meio de nota, que “acredita que esse aumento de casos esteja diretamente vinculado à confiança da população no trabalho da DAS, pois os casos foram diretamente notificados na unidade, o que possibilitou a implementação de nosso protocolo operacional e, subsequentemente, uma taxa de 100% de resolução de casos em 2024”.

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